Acordei deitado no topo de uma duna. Ponto longínquo, pacífico, perfeito pra esconder alguém que acabara de ser assassinado, foi o que deve ter pensado quem me atacou. Não sei como escapei e nem como fui parar ali, naquele lento paradiso... a última memória antes do ataque - talvez até gravada em minha retina, como dizem as lendas urbanas - foi a vista para o largo da Praça Martins Dourado. Já era noite e todos os taxistas e guardas deveriam estar em suas casas, ou de plantão em outro ponto da cidade. Ninguém para testemunhar ou socorrer-me, a não ser dois gatos preguiçosos e um cachorro desatento.
Ao meu lado, uma meia-cerca em palhas de coqueiro e no oposto oeste um magnífico sol poente, e era sexta-feira. O pôr do sol deste dia é especialmente esparramado, preguiçoso, menos quente e cobre toda a terra com um manto de luz alaranjada, alegre e emocionante. Mas essa alegria me chegava em pequenos pacotes de luz, agradecedo ao Criador por estar vivo, apesar de perdido e tão surrado como massa de pizza.
Tento me localizar e reconheço a praia do Morro Branco à minha direita, descansando lá embaixo com as casas mais antigas do conjunto habitacional. Levanto com cuidado para não desmanchar o que sobrou do meu braço direito: contei somente três dedos e meia falange, tudo ainda sangrando.
E não consigo imaginar quem foi o cretino que me mutilou.
Mas imagino o por quê: como sempre, grandes corporações não gostam de linguarudos.